
Para os amantes do português – 2
O sertanejo, belo professor de português
Nós, amantes do português, aprendemos a lidar, empregar e entender a língua nas nossas escolas lendo e pesquisando o que os grandes escritores produziram. Pois é de lei, entonces, que também aprendemos aqui no sertão, com os nossos sertanejos. Sói acontecer.
Já posso desconfiar de um sorriso matreiro no canto da boca do leitor. “Entonces” e “é de lei”, ouvimos por aqui. Ouvi “porra” num restaurante de Madri sem ter desconfiado de nenhum sorriso maroto na boca de ninguém. Foi de um garçom para outro: “Traga duas porras para essa mesa”. Prestei atenção e vi o outro garçom trazer dois churros grandes para o cliente. “Porra”, churro grande na Espanha, no nosso dicionário aparece como sinônimo de clava, pau pesado, cacete. Podemos verificar a derivação “porrete” que usamos no sentido diminutivo. Evidente que não aconselhamos ninguém pedir uma, duas ou três porras em Paulo Afonso. Peça sempre um, dois ou três churros!
O que poderíamos acrescentar ao nosso patrimônio linguístico a partir da nossa observação local? Vejamos:
. Vosmicê (vosmecê). A expressão original é a expressão pronominal de tratamento Vossa Mercê (como Vossa Senhoria). Mercê significa graça, paga. De Vossa Mercê, Vossemecê, Vosmecê, Você;
. Lampião gostava do seu parabélum (pistola automática de procedência alemã). Bellum, da segunda declinação em latim, significa guerra. Material bélico é material de guerra; para a guerra. Se alguém é belicoso, ele gosta de brigar. É famoso o ditado latino Si vis pacem, para bellum (se queres a paz, prepara-te para a guerra);
. “Djutório” (adjutório). Do latim adjutorium que significa ajuda;
. De um meu vizinho, não é raro ouvir a colocação enclítica do pronome em frases como “Você já consertou-lo?” (Você já o consertou?);
. O nosso “arretado” vem de “arreitado” (arreitar, provocar desejos sexuais);
. Usamos enxu para enxame (coletivo de abelha). Enxu é o nome de um vespeiro do Brasil;
. Doce e suave a expressão do sertanejo “ai água” para “a água”;
. Muro. O termo também é usado para expressar toda a área do terreno;
. Na nossa região, o termo “moderno” não é usado no sentido de “jovem”. Se você é moderno, você é atualizado, pra frente;
. “Carne ralada”, que se ouve na Grande Salvador, aqui é “carne moída”. O jovem do supermercado não vai lhe entender se você pedir carne ralada;
. Uma das expressões preferidas do meu amigo mestre João do Bucho era “É de lei”. A expressão significa algo que acontece sempre; que deve ser sempre de tal modo;
. Adonde vais? Adonde, mesmo que aonde. Em espanhol, “adonde”;
. Preguntar. Forma anterior ao popular perguntar. Em espanhol, usa-se pregunta e preguntar;
. Pro mode (pru mode). O significado é “para que”. No galego, a expressão é “por mor de”. O Aurélio registra “por mor de” no sentido de “por causa de”);
. Entonces (variação de entonce). Arcaico de “então” (Aurélio). O termo existe em espanhol;
. “Por causa que”. Esta bela expressão, muito usada pelos nossos sertanejos, significa “por causa de”, “devido ao fato que”. A expressão existe no italiano;
. Soer significa acontecer com frequência. O verbo sobrevive na expressão “como sói acontecer” (como sempre acontece). Na nossa literatura, já foi empregada a sentença “[Eles] soem ser ingratos”;
. “Te desconjuro”. Esconjurar significa amaldiçoar. Desconjurar significa atacar, exorcizar, lamentar, praguejar. O antônimo é bendizer;
. Te Deum, cântico de ações de graça, principalmente nas missas católicas, significa “A ti, ó Deus!”;
. Cizânia, que vemos geralmente na expressão “semear a cizânia”, significa joio, erva daninha [no meio do trigo]. Semear a cizânia significa semear a discórdia, o desentendimento.
Acabamos de pontuar algumas das nossas peculiaridades. Se você desejar tornar-se um erudito na língua portuguesa, leia. Leia muito. Leia tudo que lhe cair nas mãos. Aprende-se lendo (também ouvindo e assistindo a) o que os outros escrevem. Aprende-se muito mais lendo e observando os grandes escritores. As regras gramaticais devem vir depois da assimilação e do manuseio da língua. É como numa construção. Você primeiro adquire o terreno, providencia a papelada municipal, contrata os pedreiros e compra todo material necessário. Então você está apto a iniciar a construção (no caso, o estudo sistemático da língua). Anote: regras e gramática estão a serviço da língua. Servem para aperfeiçoar a comunicação. Tenha sempre em mente o legado de Monteiro Lobato: “Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê”.
Creio ter convencido o nosso leitor que ele vive rodeado de verdadeiros mestres da língua portuguesa.
Francisco Nery Júnior